Resumo: As origens do Instituto de Física Gleb Wataghin (1966-1972)

Os construtores

Os construtores: Marcelo Damy (à esquerda), que organizou o IFGW em seu início, e Zeferino Vaz, reitor da Unicamp de 1966 a 1978
Arquivo Central/Siarq

O IFGW e a Unicamp

A universidade de uma só faculdade - A Universidade Estadual de Campinas foi instituída em 28 de dezembro de 1962, então com a sigla UEC. No entanto, era constituída de apenas uma unidade, a Faculdade de Medicina, e assim permaneceu por quatro anos. O que era, aliás, contra a legislação da época, que exigia quatro unidades para que uma instituição fosse considerada uma universidade. O Instituto de Física nasceu por causa de uma grande reforma desencadeada pelo Conselho Estadual de Educação, com o objetivo de sanar esse “defeito”. Assim, em 19 de dezembro de 1966, foram criadas nada menos que nove novas unidades, entre as quais o Instituto de Física.

A fim de instalar tudo isso, foi nomeado reitor pro tempore Zeferino Vaz, que ocuparia o cargo durante 12 anos. Para organizar o Instituto de Física, Zeferino convidou o eminente físico brasileiro Marcelo Damy de Souza Santos.

O IFGW e o projeto da Unicamp - Para acomodar os novos institutos e faculdades, foi planejado um novo campus, a ser construído onde então existia um canavial, numa fazenda perto de Barão Geraldo que foi comprada pelo Estado.

O plano inicial era inserir o Instituto em uma estrutura urbana orgânica com as diversas unidades de forma integrada, que permitisse que a produção científica, cultural e educacional funcionassem de maneira harmônica entre as diversas áreas, compartilhando cursos e recursos. O oposto disso era uma universidade formada pela simples reunião, sob uma mesma administração, de diversas faculdades totalmente autônomas entre si, como foram as primeiras do país. A Unicamp seguiria uma estrutura do geral para o particular, do centro para a periferia:

  • na praça central, ficariam os "Estudos Gerais", cursos básicos compartilhados por muitas áreas (como o atual Ciclo Básico);
  • ao seu redor, ficariam os "institutos" com as ciências básicas (Química, Física, Matemática, Biologia);
  • ao redor dos Institutos Centrais, ficariam as "faculdades" com as áreas aplicadas, como as Engenharias, com cada área próxima da sua congênere (Faculdade de Engenharia Química próxima do Instituto de Química, por exemplo);
  • finalmente, em um círculo mais externo, estariam os órgãos complementares, como os administrativos.

Essa ideia era a culminação de um processo de experimentos e aprendizados sucessivos sobre estrutura de campus universitários que envolveram, nessa ordem, a USP, o ITA, a UnB e a Universidade do ABC. Grosso modo, o resultado final na Unicamp seguiu em parte esse esquema, ainda que com muitas variações.

Esquema da concepção inicial da Unicamp

O campus orgânico: esquema da concepção inicial da Unicamp, segundo Fausto Castilho
F. Castilho, "O conceito de universidade no projeto da Unicamp", Editora da Unicamp, 2008

Antes de Barão Geraldo

Prédio do Ginásio Industrial Bento Quirino, anos 1960

Aqui o IFGW iniciou suas atividades: prédio do Ginásio Industrial Bento Quirino, anos 1960
Arquivo Central/Siarq

O IFGW em locais improvisados - A construção dos prédios em Barão Geraldo só deslancharia a partir de 1969. Mas uma universidade é feita primordialmente de pessoas e Zeferino não esperou o fim das construções para contratá-las. Tratou de conseguir os professores necessários alugou prédios e salas em Campinas para alocar as aulas e os laboratórios temporariamente.

A física funcionou inicialmente em um prédio alugado já em janeiro de 1967, recém-abandonado pelo Ginásio Industrial Bento Quirino, que foi para outro local. Hoje, lá funciona o Colégio Técnico de Campians (Cotuca). As primeiras aulas de física começaram em abril. Em agosto, outro prédio foi alugado, o anexo do antigo Colégio Ateneu Paulista (que não existe mais). Nos andares de baixo, eram dadas as aulas de laboratório (as de Química no térreo e as de Física no primeiro). No andar de cima, eram as aulas teóricas, junto com toda a área das Exatas – Física, Química, Matemática e as Engenharias.

As pessoas antes dos prédios: o primeiro corpo docente - Para conseguir um corpo inicial de docentes e pesquisadores, a Unicamp aproveitou os que já existiam em duas outras instituções: a Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Rio Claro e a de Farmácia e Odontologia de Piracicaba. Ambas foram simplesmente anexadas à Unicamp, já em janeiro de 1967. Na de Rio Claro, havia um departamento de Física e seus professores foram incorporados ao Instituto na Unicamp.

Porém, quando os docentes de lá começaram a se mudar para Campinas, a sociedade rioclarense alarmou-se, temendo perder sua faculdade. O povo de lá se orgulhava de sua instituição. A reação local foi intensa e envolveu diversos setores – imprensa, poder legislativo, estudantes pré-universitários e até uma loja maçon. A mobilização acabou fazendo com que a anexação fosse revertida em setembro de 1968. Mas os professores que tinham vindo a Campinas ficaram e formaram, com mais três docentes contratados do ITA, o primeiro corpo docente do Instituto de Física. Todos eles eram voltados à física do estado sólido.

Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Rio Claro

Origem dos primeiros docentes do IFGW: a Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Rio Claro
Fonte: Unesp

César Lattes nos anos 1980

Uma sumidade no IFGW: César Lattes nos anos 1980
foto de Antoninho Perri

O primeiro grupo de pesquisas experimentais

A chegada de César Lattes - Para organizar o Instituto de Física, o coordenador Marcelo Damy pensou inicialmente em três áreas principais: os raios cósmicos, a física nuclear e a física do estado sólido. Os raios cósmicos eram uma tradição da pesquisa brasileira desde os estudos de Gleb Wataghin na USP nos anos 1930; a fértil atuação de vários cientistas nacionais nessa área, inclusive do próprio Damy, indicava um futuro promissor. Para formar um grupo nesse tema, convidou seu ex-aluno César Lattes. Este famoso físico já era conhecido internacionalmente por ter descoberto em 1947 o méson pi, confirmando a teoria quântica das forças nucleares de Hideki Yukawa (o que, dois anos depois, rendeu ao japonês o primeiro prêmio Nobel do seu país, seguido no ano seguinte pelo do chefe do grupo de Lattes, Cecil Powell).

Lattes no porão do Cotuca: a origem do DRCC - Na época em que transferiu-se da USP para a Unicamp, Lattes realizava uma sequência de descobertas de “bolas de fogo”, eventos extremamente energéticos nos raios cósmicos, alguns dos quais ainda sem explicação consensual. O cientista chegou em agosto de 1967 e trouxe uma linha de pesquisa já consolidada, uma equipe já experiente, um nome de peso e uma colaboração internacional, entre Brasil e Japão, firmada em 1962.

Como o campus ainda não estava pronto, seu grupo trabalhou inicialmente nos porões do atual edifício do Cotuca. Lattes ia com alguns colegas até o pico Chacaltaya, nos Andes bolivianos, e colocava ali chapas fotográficas especiais para captar raios cósmicos. Após algum tempo, elas eram trazidas ao porão do Cotuca para serem reveladas e analisadas, em busca de informações sobre esses raios e sobre a física das partículas. O grupo de Lattes foi a origem do atual Departamento de Raios Cósmicos (DRCC) do Instituto de Física da Unicamp.

Cientistas do IFGW trabalhando no porão do colégio Bento Quirino nos anos 1960

Os primórdios do Deptº de Raios Cósmicos: cientistas do IFGW trabalhando no porão do colégio Bento Quirino nos anos 1960
Antoninho Perri/Siarq/ - Acervo de Edison Shibuya

Zoraide Argüello (anos 1970)

A física do estado sólido no IFGW: Zoraide Argüello (anos 1970), que produziu os primeiros cristais semicondutores da América Latina

A grande diversificação

A física do estado sólido - E os outros grupos de pesquisa? Vimos acima que Damy planejou três grandes áreas para o Instituto de Física: raios cósmicos, física nuclear e física do estado sólido. A dos raios cósmicos foi implantada graças a César Lattes. A física nuclear não foi organizada, pois Damy saiu antes disso, em março de 1972. A de física do estado sólido foi construída a partir de 1970 por Sérgio Porto e Rogério Cezar de Cerqueira Leite e originou vários grupos de pesquisa (aos quais se juntaram os pesquisadores vindos de Rio Claro). A ideia inicial era produzir cristais, caracterizá-los e construir dispositivos com os mesmos (microeletrônicos, lasers etc.). Logo parte da equipe dedicou-se ao estudo do laser e suas aplicações – já que grande parte dos brasileiros que passaram pelo Bell Labs lidavam com esse tema. Todas essas equipes originaram os outros três departamentos do IFGW.

Sérgio Porto - Assim como Damy e Lattes, Sérgio Porto também já era um físico renomado quando chegou na Unicamp vindo da Universidade do Sul da Califórnia, onde trabalhava. Havia dado inclusive uma contribuição fundamental à física em 1961, quando conseguiu fazer espectroscopia Raman com laser. Até então, o efeito Raman era obtido com lâmpadas de gás de mercúrio; a descoberta de Porto tornou essa técnica de investigação da estrutura da matéria muito mais precisa e potencializou seu uso em pesquisas científicas. Era nessa área que ele trabalhava ao vir para Campinas. Acontece que Porto também havia formado, durante os anos 1960, um grupo de físicos brasileiros trabalhando nos Laboratórios Bell, nos EUA. Em 1970, eles já estavam dispersos pelos Estados Unidos, mas ainda se relacionando e com a ideia de voltar ao Brasil. Foi essa equipe que foi para a Unicamp nos primeiros anos da década de 1970 para formar os grupos de estado sólido.

Sérgio Porto

Sérgio Porto, um dos líderes da equipe de física do estado sólido que chegou a partir de 1970

Vista aérea parcial do campus de Barão Geraldo nos anos 1970

Paisagem desértica: vista aérea parcial do campus de Barão Geraldo nos anos 1970
Arquivo Central/Siarq

O IFGW e a política e a economia nacionais

As dificuldades - Tudo isso pode parecer bastante simples contado desta forma, mas na realidade era preciso dinheiro para implantar tudo isso. Lattes chegou com uma equipe pronta e suas pesquisas não demandavam muitos equipamentos caros, mas o que aconteceu a partir de 1970 foi a formação de grande número de grupos, com muitos equipamentos, a ponto de Porto ter exigido um prédio inteiro para o que planejava (ocupado pelo atual Departamento de Eletrônica Quântica). Além disso, a Unicamp, na época, parecia um deserto – o campus de Barão Geraldo já estava sendo construído, mas a paisagem era lunar. Como profissionais competentes e estudantes foram atraídos para um tal local?

Conjunturas favoráveis - A resposta à última pergunta passa pela fama de Zeferino, Damy, Lattes e Porto, pela reconhecida importância das pesquisas que os dois últimos realizavam, e também pelo projeto urbanistico da Unicamp, considerado muito moderno. Havia um clima de entusiasmo entre alunos e docentes que chegavam e que sentiam estar participando de um projeto muito promissor desde o seu nascedouro. Mas, além de tudo isso, havia também a tranquilizante constatação de que o dinheiro estava fluindo para a nova universidade, o que lhe garantia um futuro promissor.

E estava fluindo em boa parte de recursos governamentais, como Fapesp, CNPq, Ministério do Planejamento e, pouco depois, Finep. Esta última, aliás, teve participação muito importante no orçamento do Instuto de Física nos anos 1970. Recursos também vinham da própria Unicamp e do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID). Uma das razões para que isso pudesse acontecer é que o governo federal da época da ditadura militar (1964-1985) tinha uma ideologia desenvolvimentista e centralizadora e apostava nas pesquisas científicas em prol do avanço tecnologia. Assim, em 1967, foi lançado um Programa Estratégico de Desenvolvimento; um dos seus objetivos era reduzir a dependência do país em fontes externas de conhecimento cientifico e técnico. Em 1968, foi decretada a Reforma Universitária e instituídos os Centros Regionais de Pós-Graduação. Além disso, a economia vivia a fase pujante do Milagre Econômico, que durou até 1974. Portanto, a conjuntura econômica e política era favorável ao desenvolvimento de um projeto como o do Instituto de Física da Unicamp – e ainda mais porque Zeferino tinha trânsito tanto na linha dura quanto na linha moderada do regime.

Equipamentos para experimentos com laser e o físico Sérgio Porto, anos 1970

Desta vez, as pesquisas custariam mais dinheiro: equipamentos para experimentos com laser e o físico Sérgio Porto, anos 1970
Arquivo Central/Siarq

Os físicos do IFGW nos anos 1970

Os físicos do IFGW nos anos 1970
Foto de Antônio Lúcio

O IFGW aumenta

Rápido crescimento - Com a conjuntura propícia e gente capaz de aproveitá-la, o Instiuto de Física da Unicamp expandiu-se rapidamente. Em março de 1970, iniciou-se efetivamente a sua pós-graduação, organizada por Nelson de Jesus Parada. Em março de 1971, havia, além de Damy e da equipe de Lattes, 20 professores, 12 instrutores, 13 bolsistas e 10 técnicos. Durante esse ano, foram admitidos mais 19 docentes, 7 instrutores e 3 técnicos. Em março de 1972, havia nove grupos de pesquisa, sendo um de raios cósmicos (que se desdobrava no grupo de Lattes e no grupo da colaboração Brasil-Japão) e oito de física do estado sólido. Naquele momento, havia 40 alunos inscritos na pós-graduação. Tudo isso, apesar de, no início de 1972, grande parte dos equipamentos de pesquisa ainda não terem sido recebidos e de as instalações dos laboratórios e da biblioteca terem sido iniciados no ano anterior. O que não impediu que, em novembro daquele ano, fossem produzidos no Instituto os primeiros cristais semicondutores da América Latina.

A implantação da infraestrutura - O aluguel dos prédios improvisados em Campinas terminou em 1969 e o Instituto de Física ficou algum tempo funcionando temporariamente nas dependências da Engenharia Mecânica. A partir de fevereiro de 1971, começou a mudança do Instituto para os novos prédios no novo campus. As instalações incluíam não só laboratórios e as salas de professores, do pessoal administrativo e de aulas, mas também laboratórios de aulas práticas, a biblioteca, vidraria e oficina mecânica. O nome passou a ser “Instituto de Física Gleb Wataghin” em agosto de 1971, em homenagem ao físico ucraniano radicado na Itália considerado o pai da física no Brasil.

O IFGW em 1971

O IFGW em 1971
Arquivo Central/Siarq

Montagem com os prédios principais dos quatro departamentos do IFGW

Montagem com os prédios principais dos quatro departamentos do IFGW

A formação dos departamentos - Assim, os quatro departamentos que hoje formam o IFGW formaram-se nos seus primeiros anos:

  • O Departamento de Raios Cósmicos e Cronologia (DRCC) é originário das pesquisas de César Lattes, que chegou no Instituto em agosto de 1967;
  • O Departamento de Física da Matéria Condensada (DFMC) começou com a equipe de estado sólido que veio ao Instituto a partir de 1970, sendo seu primeiro coordenador Rogério Cezar de Cerqueira Leite, que chegou na Unicamp em agosto daquele ano;
  • O Departamento de Física Aplicada (DFA) do Instituto de Física da Unicamp foi o primeiro do Brasil e tem sua origem nas pesquisas sobre as comunicações ópticas, mais especificamente na parte relativa à construção dos lasers (a outra pesquisava as fibras ópticas). Seu primeiro coordenador foi José Ripper Filho;
  • O Departamento de Eletrônica Quântica (DEQ) inicialmente reuniu os grupos de pesquisa sobre laser liderados por Sérgio Porto; seu edifício-sede (o prédio A-6 ou “Edifício Sérgio Porto”) foi inaugurado em 1976.

O IFGW depois de 1972

O IFGW e a crise do petróleo - A partir de 1973, com a crise do petróleo, vários grupos se aplicaram na pesquisa de fontes alternativas de energia: fusão nuclear, enriquecimento de urânio a laser, hidrogênio, energia solar e até produção de derivados do petróleo a partir do carvão, sem precisar do “ouro negro”. Apareceram também pesquisas para relacionadas a combustíveis tradicionais, como as sobre catálise para aumentar a eficiência dos motores de carro. Com o fim da crise dos combustíveis, alguns desses grupos desviaram seus interesses para pesquisas mais básicas. Outros continuaram na mesma linha, como o do hidrogênio, que chegou a construir o protótipo de um carro a hidrogênio.

Vega II, carro elétrico movido a célula combustível, feito no IFGW

Energia alternativa: o Vega II, carro elétrico movido a célula combustível, feito no IFGW
Fonte: Laboratório de Hidrogênio (LH2)

O IFGW desde 1980 - Nosso resumo das origens do Instituto de Física Gleb Wataghin termina aqui. Nas décadas seguintes a 1980, o Instituto continuou crescendo, trazendo várias constribuições importantes, como a tecnologia do nióbio, as fibras ópticas, a primeira cirurgia oftalmológica do país, as primeiras células solares da América Latina, o carro a hidrogênio. Apesar de o setor de física nuclear não ter sido implantado de início, essa área desenvolveu-se naturalmente no Instituto. As pesquisas acompanharam a abertura de novas áreas, como a nanociência, e expandiram-se para outras, como a biofísica, a física médica e a teoria e a história da ciência. Observou-se também uma expansão dos grupos teóricos nos últimos 20 anos. Entre as novas infraestruturas foram construídas, destacam-se o Centro de Computação, em 1984, e o Laboratório Integrado de Ensino de Física, nos anos 1990. Enquanto isso, as pesquisas em tecnologia contribuíam decisivamente para a transformação de Campinas em um pólo tecnológico. Nas páginas a seguir, há uma narrativa expandida da história do Instituto desde seus primórdios até 1980.