Os raios cósmicos no porão

Lattes instala-se na Unicamp - Foi essa linha de pesquisa que Lattes transferiu à Unicamp. Como os prédios do campus novo da universidade ainda não existiam, o reitor falou para o grupo se instalar nos porões do prédio do antigo Ginásio Industrial Bento Quirino. Esse grupo era o antigo Grupo de Emulsões (GE).

Fachada do Colégio Bento Quirino, nos anos 1960

Fachada do Colégio Bento Quirino (atual Colégio Técnico de Campinas, Cotuca), nos anos 1960, onde começaram as atividades do Instituto de Física da Unicamp
Fonte: Arquivo Central da Unicamp (Siarq)

Ali embaixo, eram reveladas as chapas fotográficas trazidas de Chacaltaya (outras chapas eram também reveladas no Japão). Poucos meses depois de chegar, o grupo de Lattes anunciou a observação de mais uma bola de fogo, a que chamou "açu". Em 1969, foi observado a maior de todas, a "Andrômeda", que repercutiu na imprensa.

Um testemunho de um dos alunos de Lattes, Armando Turtelli, transmite uma imagem viva de como era a vida nos porões do Cotuca naquela época:

Na melhor tradição dos primórdios da física moderna, todos do grupo conviviam em um pequeno espaço, o que permitia uma intensa e permanente interação. Chegávamos ao redor de 9 horas da manhã, na hora do almoço comia-se algum prato feito no “Mercadão” e ficava-se até tarde da noite. Após as 18-19 horas, quando o resto do prédio se esvaziava, discutiam-se os resultados, as medidas feitas, as dúvidas, as propostas, os planos, os sonhos que todos tínhamos. Nesses momentos, a presença de Lattes era sempre o fator surpresa, pois com ele os temas das conversas eram os mais variados: física de partículas, histórias irreverentes, laboratórios de física em países distantes e impensáveis para nós na época (como a China de Mao e a União Soviética), política, música, artes em geral, divagações improvisadas sobre qualquer tema de física, relatividade (a eterna pedra no sapato para Lattes), grandes físicos etc.
Essas reuniões, seja para discutir resultados, ou simplesmente para conversar, também aconteciam na casa do “professor” na Rua Barão de Itapura, já perto da lagoa do Taquaral, em qualquer dia da semana, em qualquer horário, sempre que ele convocava o pessoal. Lattes fora contemporâneo de quase todos os “grandes” da física do século 20 e sempre tinha inúmeras histórias a nos contar sobre eles, coisas que os livros jamais nos haviam ensinado.

O fato de Lattes ter transferido seu grupo para a Unicamp tornou possível dar impulso às pesquisas sem grandes somas de dinheiro, pois os equipamentos já existiam, e também o observatório de Chacaltaya, os recursos humanos e a cooperação internacional, e era um tipo de pesquisa possível de ser feita no prédio do Bento Quirino. O resultado foi que, apenas dois anos depois de instalado o Instituto, este já era notícia em grandes jornais e nas edições de 4 e de 25 de junho da revista Veja - por causa das descobertas das bolas de fogo por Lattes, especialmente da Andrômeda.

Cientistas do IFGW trabalhando no porão do Colégio Bento Quirino nos anos 1960

Cientistas do IFGW trabalhando no porão do Colégio Bento Quirino nos anos 1960
Foto: Antoninho Perri/Acervo do Arquivo Central da Unicamp (Siarq)/Acervo de Edison Shibuya

Depois de Lattes - As pesquisas sobre raios cósmicos no IFGW aumentaram e se diversificaram ao longo de sua existência. Em meados dos anos 1990, as detecções com chapas fotográficas foram substituídas por detecções eletrônicas, que levaram ao envolvimento estreito do Instituto com o projeto internacional Pierre Auger. O objetivo deste projeto é descobrir que fenômeno astronômico pode ser capaz de produzir os chamados raios cósmicos ultra-energéticos. Uma única partícula desses raios (do tamanho de um núcleo atômico) pode ter tanta energia quanto uma bola de tênis a 100 km/h. Isto ainda não tem explicação consensual. Para encontrá-la, foram construídos dois grandes observatórios nos Hemisférios Norte e Sul.

Apesar de o observatório de Chacaltaya ter sido desativado nos anos 1990, as chapas fotográficas ainda possuem muito material não analisado ou possível de ser revisitado e os cientistas da Unicamp continuam trabalhando com elas. Além disso, as pesquisas passaram a incluir também a outra vertente da física das partículas experimental, os aceleradores de partículas, por meio de cooperações internacionais com grandes laboratórios dotados desses equipamentos, como o Fermilab, o de Brookhaven (EUA), o LVD (Itália) e o CERN (França/Suíça). Nas duas vertentes, a partir dos anos 1980, passou-se a realizar pesquisas intensas com os neutrinos, partículas envolvidas em vários fenômenos físicos cruciais, desde a astrofísica até a física fundamental. Todas essas novas vertentes são investigadas atualmente também pelo Grupo de Léptons (GL), Grupo de Estudo de Física e Astrofísica de Neutrinos (GEFAN) e Grupo de Física Teórica (GFT).

Também merece menção uma outra pesquisa iniciada por Lattes em 1970 que resultou em diversas linhas de estudos sobre Física Nuclear. Ele queria testar uma hipótese levantada pelo físico inglês Paul Dirac (1902-1984) em 1937, segundo a qual as constantes universais, como a carga do elétron, a constante de Planck, a velocidade da luz no vácuo e a constante gravitacional, não seriam totalmente constantes, mas variariam no tempo, especialmente no início da história pós-Big-Bang. Para isso, a idéia era verificar se havia algum desvio entre a observação de alguns fenômenos relacionados à Física Nuclear feita por diferentes métodos. Não se obteve precisão suficiente para se observar qualquer suposto desvio, mas isso gerou várias outras linhas de pesquisa na Física Nuclear, como as medidas de contaminação radioativa, terapias contra câncer, termocronologia (determinação das temperaturas das rochas no passado remoto) e fissão nuclear. Essa é a origem do atual Grupo de Cronologia (GC).